Balduíno IV, o protótipo do católico – III

Ficamos maravilhados com as vitórias alcançadas pelo Rei leproso contra os inimigos da Igreja. Entretanto, ele travou dois combates simultâneos: um contra os maometanos e outro contra o lado  ruim que todo homem leva em si. A verdadeira e mais dura batalha do homem é a enfrentada dentro de si.

 

Pudemos realçar vários ensinamentos que se desprendem da vida heroica, santa e magnífica de Balduíno IV, o Rei leproso de Jerusalém(1). Eu gostaria, entretanto, de fazer um pequeno  complemento. É preciso dar com prontidão e alegria Tenho ouvido, às vezes, a frase: “Dar muito não basta, é preciso dar tudo e para sempre”. É bem verdade, mas faltam ainda dois elementos para que ela fique completa.

Quando se põe clara aos nossos olhos a necessidade de dar, deve-se fazê-lo imediatamente. A cada minuto que deixamos passar sem ter dado, a doação se torna mais difícil, e vamos nos  descolando mais penosamente do objeto de nosso apreço. No fim, acabamos não dando. Se alguém, ouvindo a narração da vida de Balduíno, o Rei leproso, forma o propósito de, por exemplo, pedir o espírito de sacrifício, o amor à cruz, não deve dizer o seguinte: “Mais tarde vou pensar um pouco nisso e depois, um belo dia, começarei a rezar nessa intenção…”

Se um impulso interior da graça me leva a rezar a ele, vou começar hoje e com uma jaculatória agora: “Balduíno, glorioso Rei leproso, dai-me o vosso espírito de sacrifício!” E para não fazer torcidas e retorcidas, dando algo e depois voltando atrás, define-se bem o que se dá.

Mas isso mesmo não basta. É preciso dar com alegria. Quem dá com tristeza, tendo pena de si mesmo, não deu nada.

Por exemplo, alguém toma a resolução de fazer a Deus um pequeno sacrifício: abster-se de seu melhor travesseiro, uma vez na semana. Digamos todas as sextas-feiras, tomando em consideração que Nosso Senhor morreu numa sexta-feira por nós, na Cruz. A pessoa deve privar-se disso com alegria, porque encontrou o modo de tirar melhor proveito do seu travesseiro, que não é dormir usando-o, mas dá-lo a Deus, a Maria Santíssima.

Então a pessoa reza: “Meu Senhor, dou-Vos graças por terdes morrido por mim na Cruz, e me concedido um travesseiro que sacrifico hoje por Vós.” E afirma isto com o coração alegre por ter  encontrado com que retribuir a Deus e a Nossa Senhora a imensidade do que fizeram por ela. Há uma frase da Escritura que diz: “Deus ama quem dá com alegria” (2Cor 9, 7).

Quem dá com pena de si não pertence à estirpe dos heróis

A lepra é uma doença terrível, que cobre o homem de feridas, úlceras, pústulas; depois vão caindo pedaços dos dedos, do nariz, das orelhas, o homem vai apodrecendo inteiro. No fim da doença,  ele é uma podridão ambulante. Pensem em Balduíno IV andando no meio dos outros homens e notando que ele é objeto do nojo e do horror geral. Percebe que os outros olham para ele procurando disfarçar, mas tendo asco. Na véspera daquele dia ele ainda tinha nariz, naquela noite o nariz caiu, ou uma orelha, ou um dedo, e assim ele vai apodrecendo.

Ponha-se cada um neste papel: apresento-me para os outros, tendo perdido o nariz na noite anterior… As pessoas, por amabilidade, fingem não perceber e perguntam como passei a noite, mas interiormente pensam, rachados de dor: “O que aconteceu nesta noite com ele?”

Entretanto, diante de Balduíno IV, que na véspera de uma batalha perde o nariz, está o corcel. O Rei leproso monta a cavalo, ele todo é uma chaga e cada vez que o cavalo salta seu corpo inteiro dói. A dor aumenta e se renova à medida que o corcel apressa a velocidade, e a cada vez em que Balduíno ergue o braço para desferir um golpe com a espada.

Haveria dois modos de Balduíno partir para a batalha. Um seria: “Ai, meu Deus, então Vós quereis deste vosso pobre filho Balduíno mais este horror?” E na hora do combate: “Vós desferis contra ele um golpe que se os maometanos desfechassem seria cruel! Durante esta noite, Senhor, pelas mãos da lepra, Vós me arrancastes o nariz e desfigurastes a minha face, abrindo mais uma fonte de  dor em meu rosto. E Vós ainda quereis que eu combata! Ai que dor, que sofrimento! Senhor, eu me resigno vagarosamente, para que tudo doa o menos possível: ponho um pé no estribo, vou dar o  salto para cima do cavalo e tenho medo da dor que vou sentir. Mas pulo, estou sobre o cavalo… Ai, que lancetada!

Que horror! Ponho o pé no outro estribo…

Agora, cavalo, martirizador meu, põe-te a caminho”. Ele teria vencido as batalhas que venceu se tivesse procedido assim? Não, porque não teria pertencido à estirpe espiritual dos heróis.

O verdadeiro seria dizer o seguinte:  “Senhor, eu vou para a batalha, entrego-me a todas as dores, e sei que daqui por diante, até a hora da vitória, não deixarei de sofrer dores cada vez maiores. Dores, vinde a mim!” Pula sobre o corcel e sai depressa. A dor deve ser aceita e sorvida com coragem Assim devemos fazer com sofrimentos tão menores que a Providência põe em nosso caminho.

É uma hora de estudo ou de oração; um companheiro que nos trata como não gostaríamos de ser tratados; um superior que não nos compreende bem. Seja o que for, devemos dizer: “Dor, venha sobre mim!” A dor deve ser aceita e sorvida como um homem tomaria a taça de um vinho perfeito. Alguns goles, e a dor está sofrida. É assim que o homem se torna corajoso. Ele luta contra os  maometanos, é bem verdade, mas tem dentro de si um adversário pior do que os mouros: é o medo que ele tem da própria dor. Mas ele enfrenta!

Eu bem sei, por dura e amarga experiência própria, que é a alegria de minha existência, quanto o homem sofre na vida. Se ele entra nela com medo de sofrer, está mal engajado e não dá em nada  que acerte. Ele deve entrar na vida à Balduíno, o Leproso.

Vimos o episódio da Batalha de Montgisard(2). Balduíno IV, com apenas trezentos guerreiros, tem diante  de si um exército de milhares de mouros. Um Balduíno chorão diria: “Meu Deus, mais essa ainda? Por cima da dor, da queda do nariz, de uma orelha que começou a apodrecer, tenho ainda que ver esses trezentos homens serem esmagados pelo adversário?!”

Esmagado nunca! Um filho de Nossa Senhora não pensa nisso. Ele pensa com ânimo, com alegria no esmagamento estupendo que vai infligir no adversário. Entretanto, sabe que isso não se obtém naturalmente, porque não é possível, e ele está encurralado contra o paredão da impossibilidade. Ele levanta os olhos ao céu e clama: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…” De um jeito ou doutro Ela tem pena dele, a batalha começa, e ele entra na luta com todo o corpo, mais do que isso, com toda a alma. Algum Anjo misterioso esvoaça no céu sobre os maometanos, espalhando o terror entre eles, e os católicos avançam. Pouco depois eles são uma cunha no meio dos mouros, que se tomam de medo e fogem correndo.

Meditações no Santo Sepulcro

Podemos imaginar Balduíno voltando a Jerusalém com seus guerreiros, depois da vitória e de terem recolhido as armas deixadas pelo adversário na fuga, preparando-se, assim, para outras batalhas. Entram na Cidade Santa e se dirigem ao Santo Sepulcro, junto ao qual meditam no que ali se passou.

Lembram-se de que nesse lugar esteve o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, pensam naquela sepultura fechada, na qual não penetrava mais nem o ar nem a luz, onde o Corpo do Salvador,  transformado como se fosse o de um leproso, tantas eram suas feridas e chagas, jazia envolto no sudário com o qual os orientais envolviam os cadáveres, na escuridão completa, esmagado,  reduzido à inércia e ao isolamento da morte, enquanto a sinagoga maldita triunfava sobre Ele.

Ao cabo de três dias, àquela sepultura, sobre a qual dir-se-ia que nenhuma esperança mais pairava, os coros angélicos começam a afluir cantando, enchendo de luzes e de perfumes aquele local  onde até há pouco só houvera tristeza. De repente, por um movimento vindo de Si mesmo, Nosso Senhor ressuscita.

Sua Alma que estivera no Limbo consolando os justos do Antigo Testamento, anunciando-lhes que estavam redimidos, afinal, cumprida a sua missão, penetra no seu Corpo e O faz reviver. Todas  aquelas feridas não apenas saram, mas se transformam em fonte de luz. De maneira que sua fronte sagrada, até há pouco coroada de espinhos, refulgia coroada de sóis que espargiam de cada furo produzido pela coroa de espinhos.

Certamente, antes de aparecer a qualquer outra pessoa, Ele esteve num lugar quase tão triste quanto uma sepultura: o Cenáculo, onde Maria Santíssima, na penumbra, chorava a morte de seu  Filho, à espera do momento da Ressurreição. Quando de repente Ele entra radioso.

Sem dúvida, apraz-nos imaginar o último olhar de Jesus para Nossa Senhora, do alto da Cruz, quando Se olharam e, logo em seguida, Ele fechou os olhos e morreu. Uma coisa extraordinária!

Como terá sido, então, o primeiro olhar depois da Ressurreição? Como Ele A inundou de gáudio, de felicidade, e qual terá sido o diálogo dos dois naquele momento?

A maior batalha do homem é a  que ele trava dentro de si

Quiçá Balduíno IV teve em vista tudo isso no momento sagrado em que penetrou no Santo Sepulcro, passo ante passo, carregando todas as suas dores, todas as suas  glórias, talvez cingindo a coroa real em cima daquele monte de chagas que era ele, e osculando com indizível veneração e ternura aquela sepultura.

Não consta que tenha pedido a cura. Se ele a pedisse, provavelmente teria saído curado. Mas o Rei leproso travava duas batalhas simultâneas: uma era contra os maometanos; outra contra o lado ruim que todo homem leva em si. Ele não era concebido sem pecado original e, portanto, tinha lados ruins, como todos nós; mas ele os combatia. É muito mais duro combater o próprio lado ruim do que um mouro que se tem na frente. A verdadeira batalha do homem não é a que ele trava fora de si, mas a enfrentada dentro de si. Balduíno rezou a Nosso Senhor e, a não ser no dia do Juízo, não poderemos saber o que o Divino Redentor respondeu a ele. O fato é que o “rei das dores” saiu de lá provavelmente mais chagado, mais dolorido, mais alegre e mais grandioso.

Por certo, ao lado da admiração que a figura excelsa desse rei leproso produz, nasce uma perplexidade: “Mas se Dr. Plinio pensa que eu devo encontrar coisas dessas no meu caminho, não tenho  coragem nem meios de fazer isso! Ele levanta diante de mim uma montanha alta como o Himalaia, e depois me diz: ‘Suba!’ Mas ele não percebe que não tenho vontade de subir o Himalaia, nem  quero sofrer tanto assim? Como é que Dr. Plinio me incita a uma coisa para a qual, em última análise, a qualquer homem se pode perguntar: ele terá coragem?” Respondo o seguinte: É bem  verdade, e se eu – que não tenho o direito de me comparar a Balduíno IV – tivesse sabido, quando jovem, tudo quanto iria sofrer, talvez não tivesse tido coragem.

Já em menino tive batalhas muito duras para enfrentar, e não senti coragem. Mas fiz uma coisa: ajoelhei-me diante de uma imagem alva, na Igreja do Coração de Jesus, e sem coragem de avançar, as não querendo de nenhum modo recuar, disse: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!”

Uma música que poderia ser o cântico de guerra de Balduíno

A palavra “salve”, em latim, é uma saudação, como quem diz “bom-dia”. Mas eu era menino e sabia uns arranhões de latim que se aprendia no ginásio. Eu pensava que “salve” queria dizer “salvai-me”, e então dizia neste sentido: “Salvai-me, Rainha! Dai-me forças, dai- me coragem, Vós que sois Mãe de misericórdia!” Nunca tinha prestado tanta atenção naquela oração como naquele momento em que eu estava aflito, e pensava: “Ela é mãe como mamãe… Como mamãe é boa, como ela tem pena de mim, como eu confio nela, e como a quero bem. Mas Nossa Senhora me quer mais bem do que mamãe me quer. Estou aqui como um trapo sujo aos pés d’Ela, não sinto força para ser bom, mas tenho certeza de que, pedindo à Mãe de misericórdia, Ela me dará esta força e acabarei, com o auxílio d’Ela, vencendo a batalha de minha vida, que consiste em ser verdadeiro católico apostólico romano.”

A partir desse momento, a Salve Regina foi a respiração de minha alma. Em todas as aflições de minha vida – quantas e quantas foram! – a coragem nunca me faltou, porque Ela dava. E isso porque a Santíssima Virgem resolveu ouvir a oração para lá de aflita de um menino aflito, e tenho certeza de que Ela mesma, naquele momento de aflição, movendo as coisas, fez com que eu fosse parar lá, diante do altar d’Ela. Posso afirmar que, em todos os transes de minha vida, nunca deixei de pedir forças a Nossa Senhora, e Ela nunca deixou de me dar as forças de que eu precisava.

Sei que pareço um homem muito decidido, muito forte; graças a Deus eu o sou porque Ela dá a força. Se Ela me abandonasse, eu cairia como uma pétala de uma flor no chão; vem a vassoura e a  joga no lixo, está acabado! Eu tenho essa força porque Ela é a minha força.

Há uma canção lindíssima, que me enche o coração e a alma, cuja letra é a oração do paraquedista francês: “Mon Dieu, donne-moi la souffrance…”(3) Esse poderia ser o cântico de guerra de  Balduíno, o Leproso, na hora de montar no cavalo e avançar, em meio a cem dores e aflições, no auge do sofrimento, mas também entre mil atos de amor a Deus e de alegria por estar sofrendo por Ele. E com sua alma limpíssima da lepra do pecado, derrubando a cabeça de quantos malfeitores empedernidos! Balduíno IV não está canonizado, mas nós podemos supor com que amor a alma dele foi acolhida por Deus, e com que glória nos aparecerá no dia do Juízo. Por certo ele está no Céu ouvindo este comentário,  feito neste Brasil longínquo do qual não tinha ideia que pudesse existir naquele tempo; este Brasil no qual, no século XIII, habitavam apenas tribos de índios, em meio ao obscuro matagal das florestas brasileiras, mas onde hoje se elevam exclamações de entusiasmo pelo exemplo que ele deu. Exclamações de pessoas esperançosas de seguirem esse exemplo e serem verdadeiros batalhadores, dentro e fora de si mesmos. É o que eu lhes desejo de toda a alma.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/5/1991)

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