A arte de governar

Para bem governar é necessário discernir a ação da graça conjugada com os fatores naturais do povo e do lugar, favorecendo a prática da virtude e combatendo o mal de todos os modos.

 

Ao analisarmos o Brasil vemos que, ainda em nossos dias, ele tem na maior parte do seu território uma expansão demográfica desproporcionada com a área de habitação, ou seja, uma área imensa que a população tem certa dificuldade de preencher. De maneira que se estabelecem núcleos de população aqui, lá e acolá, espalhados de tal maneira que o intercâmbio em muitas partes do Brasil ainda é difícil.

Famílias de almas levadas à harmonia e afinidade

Essa dificuldade faz com que haja isolamentos e tendência a formar zonas com mentalidades e características distintas, constituindo um país com as variedades mais numerosas, entretanto com certa harmonia que a índole brasileira põe nas coisas, pela qual os Estados do Nordeste, por exemplo, constituem uma espécie de sociedade com talento e modo de encarar a vida peculiares, uma filosofia própria, em íntima conexão com o panorama, com as possibilidades do local, os recursos materiais que apresentam, mantendo uma coesão íntima.

Para mim, o Nordeste acaba no limite entre a Bahia e Minas Gerais. Dois Estados tão diferentes quanto possível, entretanto suas fronteiras não dão lugar a entrechoque. Pode ter havido arranhõezinhos, coceiras, mais nada. Por miscigenação, mas também pelo desejo de uma vida harmoniosa acima de tudo, arranja-se um jeito de aparecer um tipo humano abaianado na fronteira entre ambos os Estados, que é mineiro, mas no qual está presente a Bahia. E que tem, portanto, certos charmes, certo jeito, certos predicados da Bahia que são únicos.

Há uma espécie de permeação das fronteiras, do baiano amineirado e do mineiro abaianado que não se fundem inteiramente, mas tudo isso convive dentro de uma sobra de terras, e com uma grande vontade de não brigar. Não é apenas dizer que esses elementos intermediários evitam a briga. Mais ainda: essa briga nem se esboça nem é um desejo.

O baiano de Salvador já nem pensa em Minas, assim como o belo-horizontino nem cogita na Bahia. Porém, há de fato uma espécie de permeação que faz com que o espírito, a inteligência, o talento, a graça formem quase uma nação, mas sem vontade de ser uma nação, não quer separar-se, nem se preocupa em preservar-se; nasce como uma planta no campo, sem instinto de conservação, que se esparrama quanto pode e quando a ceifam ela não chora.

O Maranhão ainda pertence ao Nordeste, mas a meu ver o Pará é uma zona de encontro da Amazônia com o Nordeste.

Depois, abaixo de Minas, apesar de todas as diferenças, eu reputo que São Paulo e Rio formam culturalmente um só bloco, indiscutivelmente muito diferenciado, mas que de algum modo se prolonga até o Paraná, separado dos gaúchos por Santa Catarina, que constitui uma cortina com características próprias que tem e não tem muito prolongamento na zona alemã do Rio Grande do Sul.

Em todos esses Estados foram se formando famílias de almas, levadas a uma espécie de harmonia e de afinidade que tem sua relação com o que aconteceu no lado hispano da América do Sul.

Formação de regionalismos possantes na Europa

Enquanto a Espanha metropolitana é cheia de heterogeneidade, vemos que a “Espanha” sul-americana tem muito menos oposições entre país e país, do que, por exemplo, na zona norte da Espanha entre duas ou três faixas de populações existentes ali. Contudo, não há essa homogeneidade brasileira. Aqui somos irmãos, ali são primos muito achegados, mas primos.

Entretanto, de um lado e de outro dessa linha divisória entre hispano e luso houve o mesmo fenômeno, pois também Portugal é muito mais diferenciado dentro de si do que o Brasil. Já a Espanha é muitíssimo mais diferenciada em seu interior do que a América espanhola. Nesta, porém, veem-se também as mesmas sobras de espaço e a formação das mesmas “ilhas” ou “arquipélagos” de regionalismos que começaram a florescer e que teriam dado, cada qual, algo bem original, interessante, se não fossem certas circunstâncias que descreverei daqui a pouco.

Para compreendermos bem a energia desse fenômeno, que a meu ver fica no fundo de uma descrição do Brasil, antes de voltar a esta eu queria considerar um fenômeno análogo curioso.

As invasões dos bárbaros na Europa representaram qualquer coisa assim. O Império Romano era muito pouco numeroso para povoar as vastidões que conquistara. Entraram por cima os bárbaros e quebraram o Império Romano. Depois disso, cansaço geral, zonas vastas entre uns e outros povos e a formação de regionalismos possantes.

O absolutismo real quis acabar com os regionalismos

Mas não havia nenhuma força empenhada em abafar esses regionalismos, nada colaborava para estancá-los. Daí veio a Europa com suas demarcações, suas diferenças, suas riquezas. Mesmo assim, a partir da Revolução começou a trama para homogeneizar artificialmente a Europa.

Ninguém sabe o que teria sido o Velho Continente se não fosse o absolutismo real que, de um jeito ou de outro, tomou conta de todos os países europeus. Alguém objetará: “Na Alemanha, não.” Devagar… A Prússia foi um foco de absolutismo medonho nas próprias fronteiras, e a Casa d’Áustria, em seus próprios limites, constituiu Estados absolutistas sem regionalismos. De maneira que o mundo alemão era isso também: Baviera, Saxe, Württemberg assim fizeram nos seus âmbitos internos.

Os outros Estados não realizaram porque não podiam, e era o que havia de mais sadio na Alemanha, uma espécie de magma de quinhentos ou seiscentos pequenos príncipes soberanos, senhores de uma aldeia e metade da ponte que dava para a aldeia vizinha…, mas soberanos! Mandando delegações falar com o rei da França, discutir com o imperador, brigar com o rei da Prússia, etc., com peso.

Aquilo que houve de mais regional e sadio no continente europeu foi a Europa antes do Renascimento. Um pouco os Países Baixos, o antigo reino de Lotário, feito de cidades livres, feudos e pequenos reinos, e assim ficou até o fim, com um regionalismo muito marcado.

No período do Brasil–colônia trabalhou-se para a centralização

No Brasil, a formação de blocos isolados teria dado, mutatis mutandis, regionalismos contra os quais também houve o intuito de liquidar. Portugal fundou aqui as Capitanias, as quais deram em fracasso porque a nobreza a quem foram concedidas desejava viver em Lisboa. Já não era a nobreza feudal, mas a dos tempos modernos, do século XVI, que queria fazer navegações fabulosas, porém não se estabelecia nos lugares por onde navegava. Em geral, os nobres voltavam a Portugal, não pediam para serem vice-reis vitalícios e hereditários em algum lugar que eles descobrissem, nem o rei permitia. A tendência do monarca era de fazer daqueles Estados todos uma monarquia absoluta, unitária, com cada conquista portuguesa funcionando à maneira de província.

Tomemos, por exemplo, Goa, Damão, Diu, enclaves portugueses na Índia. Para a ótica portuguesa absolutista são províncias. O rei enviava um governador para Goa como mandava para Beira. Também em Moçambique e Angola foi assim. Dessa maneira o regionalismo não se desenvolve, porque enquanto não houver elites regionais não há regionalismo. E este sistema não era inteiramente impeditivo, mas criava largos obstáculos à formação de elites regionais.

O Brasil teve um governo geral, depois foi dividido em dois governos gerais, e mais tarde voltou a ter um único governo geral que, por fim, transformou-se em vice-reinado. Tudo isso mandado fazer sucessivamente por Portugal, a partir do Paço de Belém. As Capitanias foram lentamente absorvidas, enquanto o mesmo povo, em Lisboa, ia “comendo” os regionalismos dentro do próprio Portugal.

Então, no período do Brasil-colônia tivemos um primeiro trabalho para centralizar, ao invés de estimular os regionalismos que, apesar de tudo isso, de algum modo foram se formando a ponto de nos ter sido possível descrever as diferenças entre os diversos Estados brasileiros. Mas essas diferenças existiam à maneira de laivos que não tomaram a força necessária.

Analisemos, agora, como estavam esses laivos quando o Brasil foi declarado independente.

A nobreza da terra

Proclamado o Império, o próprio fato de o Brasil ser monarquia fez com que as partes mais conservadoras, as elites mais marcadas, nascidas do solo muito mais do que vindas de Portugal, iam formando a tal “nobreza da terra”, que se distinguia, mas não se separava da nobreza do reino. Esta era constituída pelos nobres vindos de Portugal, às vezes membros pobres das famílias da nobreza, que vinham para o Brasil e tinham foro nobiliárquico, com todos os privilégios dessa condição. A nobreza da terra não descendia dos nobres do reino, mas enobrecia pelo fato de, durante algum tempo, ter a direção de um desses blocos sociais. Esta, entretanto, olhava muito mais para o Rio de Janeiro, onde estava o trono imperial. E neste sentido a monarquia entrou como um fator de centralização.

Cito dois casos característicos: Pernambuco e Bahia. Cada qual constitui um polo e, se não fosse a monarquia, teriam levado uma vida muito mais centralizada em si mesmos e, portanto, mais regional, cultural e psicologicamente autônoma.

A existência de uma corte no Rio de Janeiro fazia com que todas essas elites mandassem seus melhores homens, suas melhores inteligências para luzir ali, e as damas mais elegantes para frequentarem a corte, considerando-se província e caipirada em comparação com o modelo que viam nascer na capital. Este foi um fator nocivo para a Contra-Revolução.

Sentido descentralizador das monarquias medievais

As monarquias medievais tinham um sentido descentralizador muito forte. Segundo a concepção daquela época, quando um rei possuía vários filhos era preciso dar um grande feudo para cada um, desmembrado das próprias terras do monarca. Assim, à medida que a dinastia ia mudando, o país se multiplicava em novos feudos, porque ficava feio um príncipe ser como é hoje, por exemplo, o Duque de York, que tem tanto a ver com York quanto qualquer inglês que esteja palmilhando uma rua de Londres. Quer dizer, um título meramente verbal, não existe na prática um Duque de York.

Na monarquia medieval, não. O nobre ia para um determinado lugar a fim de abrir ali um foco de vida, mais ou menos como na Igreja, até trinta ou quarenta anos atrás, quando se dividia uma diocese e se nomeava um bispo para a parte da que se tornara uma nova diocese, a qual passava a constituir novo foco de vida religiosa.

A partir da Revolução, todas as monarquias foram centralizadoras. A menos centralizadora foi a austríaca, mas assim mesmo muito centralizadora em comparação com as medievais.

É a regra da Revolução, visando por toda parte resultados como estes: na Europa as grandes cidades e as regiões homogeneizadas. Na América do Sul, cortar a formação das elites regionais e dos regionalismos, para esses irem morrendo aos poucos, com vistas a uma república universal.

O processo pelo qual todas as nações europeias sofreram uma espécie de evanescência das suas fronteiras internas e constituíram blocos coesos e anônimos, como quadradinhos de açúcar, levou ao Mercado Comum Europeu. É o desfecho.

Poder-se-ia levantar uma objeção: há no que estou dizendo uma concepção tão apaixonada e lírica do regionalismo, que se pergunta se isso não conduz, de algum modo, para a autogestão. Afinal de contas, qual seria a evolução bem feita da Idade Média?

Evidentemente, não é a transformação em corpúsculos inviáveis. Seria uma caricatura, onde o presidente da cooperativa faz o papel de marquês. Se assim fosse, estaria tudo estropiado.

A meu ver, se considerarmos os reis santos e direitos e estudarmos as tendências dos reinos deles, compreenderemos o que era o espírito católico que germinava ali, e como essa germinação foi truncada.

Sadio regionalismo

Afinal de contas, o que é o sadio regionalismo e a partir de que momento uma unidade se plurifica? Até que ponto essa plurificação é exagerada e deve voltar ao unum? Em última análise, qual é o futuro da regionalização? Ela conduz a quê?

Assim como a graça produz entre a personalidade de cada um de nós uma afinidade em função de uma vocação comum, e por mais que essas personalidades sejam afins, são e devem ser distintas, ela também age nas nações e regiões, determinando movimentos diversos que implicam na forma da sociedade estruturar-se, organizar-se e caminhar para a sua própria perfeição, o que, por sua vez, é o reflexo da vida espiritual da sociedade.

O feitio da santidade da nação determina a forma e o grau de plurificação, de maneira a estabelecer o equilíbrio entre as tendências centrípetas e centrífugas que, vistas não como antagônicas, mas complementares, constituem a harmonia.

Desse modo, sempre haveria a partir do regionalismo e do feudalismo uma linha de progresso que não seria centrífugo, nem uma traição à unidade, mas uma multiplicidade que fosse a plena frutificação da unidade, tornada mais forte, e um estilo de imbricamento que dependeria da forma de virtude, do matiz de vida espiritual e de santidade para que cada povo fosse chamado.

Com efeito, ponham a fidelidade plena à graça e o problema se resolve. Entretanto, não se soluciona apenas pela fidelidade à graça. É preciso haver uma arte de governar por onde quem governa perceba qual é o ponto de chegada, como se conjugam a graça e a natureza em determinado lugar, e como a graça está atuando ali, para discernir profeticamente, com clareza, os próximos passos. Por certo, um futuro que nem sempre se vê como será, mas para o qual a boa dinastia ou a boa sucessão de governos de elite tendem constantemente. Mais do que qualquer outra coisa, governar é ter essa ordem e esse equilíbrio em cena.

Então nós compreendemos que a arte de governar se faz estimulando o movimento uno da graça e da natureza no lugar governado, de maneira a estimular a prática das virtudes pela correspondência à graça que irriga a natureza, e fazendo com que aquilo caminhe por um dinamismo próprio. Isto é ser conservador e, ao mesmo tempo, promover o progresso, no melhor sentido da palavra.

Contudo, o governo comporta outra coisa: a arte de corrigir. Porque não se trata de uma federação de Anjos, mas de gente continuamente tendente a pecar, a errar. Portanto, a arte de governar deve entrar em luta contra o mal, percebê-lo, ver para onde ele caminha, esmagá-lo; e quando ele se tornou tão forte, por falta de virtude dos cidadãos, que não é possível expulsá-lo, conduzir contra ele uma luta na qual, se não se puder combatê-lo de frente, convive-se com ele debilitando-o, criando-lhe condições opostas, “politicando” contra ele, mas procurando liquidá-lo de todos os modos.

Desses dois elementos se faz o caminho histórico de um povo, e ele toma a fisionomia desejada pela Providência.

O Brasil ideal

Assim, quem esteja governando deve tender continuamente, na medida do possível, para um ponto ideal, e para isso precisa conhecer muito bem esse ponto, embora ele só se realize esporadicamente na História. Mas é bom que esse ponto ideal seja uma meta difusa na alma dos povos, com vistas a fazê-los tender de algum modo para isso. Em outros termos, essa ordem ideal, que existe habitualmente apenas de um modo incompleto e irregular, precisa ser conhecida para que os bons tendam para lá.

Há um plano de Deus que resulta de uma certa situação natural e de um certo “equipamento” sobrenatural. Esses dois fatores se encontrando têm um dinamismo próprio que caminha numa certa direção. O segredo é conhecer o mecanismo interno desse dinamismo e ajudá-lo estimulando, protegendo e corrigindo eventuais desvios, não o dinamismo em si, porque este é bom.

Por isso, ao tratar do Brasil deve-se pensar num Brasil ideal. Esse Brasil ideal não se faz lendo nas bibliotecas europeias, mas imaginando, nesses vários esboços de alma que o Brasil teve, como seria o sopro da graça e a perfeição do local, para depois tentar imaginar, com alguma probabilidade, o que poderia ser, nesse Brasil, a harmonia entre a unidade e a variedade, o que favorecer e o que combater, qual é o contra-Brasil atrelado ao Brasil, o “Brasil velho” acoplado ao “Brasil novo” – no sentido espiritual que dá São Paulo a respeito do homem velho e do homem novo (cf. Ef 4, 22-24) –, e como fazer o incremento do Brasil na ordem temporal como fruto da conjugação desta com a ordem espiritual.

Então, considerando assim esses vários Brasis, vai-se elaborando uma escola de pensar, de viver, de fazer o bem, de combater o mal, uma escola de rezar.    v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/6/1987)
Revista Dr Plinio 265 (Abril de 2020)

 

 

Errata: Na nota da página 31 do n. 264, no lugar de “Edmond Rostand (*1868 – †1918)” leia-se “Alexandre Dumas (*1802 – †1870)”.

 

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