Renunciar-se a si próprio para seguir o Redentor

Após um retiro espiritual, o objetivo de alcançar a santidade, sob o impulso da graça de Deus, implica em que as verdades tão corajosamente meditadas e as resoluções tão generosamente tomadas sejam levadas até o fim, consoante os ditames propostos pelos Exercícios de Santo Inácio de Loyola. Com esse ensinamento, Dr. Plinio conclui sua conferência no marco das celebrações do IV Centenário da Companhia de Jesus.

 

As verdades claras e simples, afirmadas nos Exercícios Espirituais nem por isso deixam de ser profundas e fundamentais. Constituem elas os grandes princípios que devem dirigir toda a conduta do cristão. Por isto, é incontável o número de conseqüências que nelas pode encontrar o retirante.

Questões terríveis e luminosas que elevam a alma

Daí um longo trabalho — fecundo somente se for pessoal — que o retirante deve levar a cabo: a fixação das linhas ideais de toda a existência cristãmente vivida. Qual a conduta que deve ter em sua vida familiar, social, profissional, política, o homem persuadido de que foi criado para a glória de Deus? Quais os deveres que essa grande verdade, ao mesmo tempo tão terrível e tão suave, lhe impõe para com a Igreja, as almas, a civilização cristã? Que perderá ele ao transgredir estes deveres, ou ao lhes dar um desempenho superficial e fraudulento? Que lucrará com sua prática honesta e integral? Qual a razão que precisa movê-lo a cumprir estas obrigações por puro amor de Deus, abstração feita até mesmo das punições ou das recompensas eternas? Questões terríveis e luminosas, as quais, se de um lado mostram ao homem, por vezes, uma longa jornada a vencer nos caminhos ásperos da santificação, de outro lhe franqueiam o acesso a píncaros dourados pelo sol, radiantes de glória e de grandeza, certamente muito diversos dos vales lamacentos ou das grotas sombrias em que se arrasta habitualmente a fragilidade humana.

Diz Santo Agostinho que “Deus não deixa a fragilidade sem remédio, nem a culpa sem punição”. Esta frase admirável encontra nos Exercícios de Santo Inácio sua plena demonstração.

“Deus que nos criou sem nós, não nos salvará sem nós”

Fala-se muito, em nossos dias, da debilidade humana e, certamente, o aspecto das ruínas generalizadas que nos circundam sugere, a todo o passo, a lembrança de nossas misérias. Mas os espíritos vãos que a toda hora se comprazem em lembrar nossa fragilidade, não têm em vista que “Deus não a deixa sem remédio”. Portanto, se somos fracos, temos culpa por nossa fraqueza. Se o homem é fraco, a graça é forte. Sem Jesus Cristo, ele “nada pode fazer”. Porém, fortalecido pelo Senhor, “tudo pode n’Aquele que o conforta”.

Assim, por mais duros que sejam os deveres — discernidos por nosso olhar quando iluminado pelos clarões por vezes implacáveis, que se desprendem dos Exercícios de Santo Inácio — não há em nossa fraqueza qualquer desculpa que legitime nossos recuos, nossa covardia e nossos indefinidos estacionamentos nos abismos do pecado, ou nos charcos da mediocridade. Conhecendo toda a necessidade do socorro divino, Santo Inácio aconselha reiteradamente a prece, no período dos Exercícios Espirituais. Mas, a oração não basta. Como diz Santo Agostinho, “Deus que nos criou sem nós, não nos salvará sem nós”. Santo Inácio pede, quer, exige uma cooperação fiel de todas as potências de nossa alma para a obra da salvação e santificação. De nada valerão seus Exercícios aos retirantes dispostos a ver apenas as verdades cômodas. De valor igualmente nulo serão para aqueles que, tendo atingido o ideal de uma vida cristã comum, ou uma existência inteiramente santificada pela prática da perfeição, não se entregarem resolutamente à segunda tarefa, consistente no confronto implacável da vida que levam, das resoluções que haviam formado, dos projetos que vinham nutrindo, com a linha de conduta que acabamos de traçar.

O motivo de tanto ódio aos exercícios espirituais

Sem qualquer receio de erro, pode-se afirmar que nesta dolorosa operação se acha o motivo profundo de tantas animadversões que os Exercícios de Santo Inácio têm suscitado. Com efeito, a alma pecadora que não quer regenerar-se odeia estes processos de cura espiritual; e à alma tíbia, não desejando subir mais alto nas vias da santificação, repugna este método que põe a nu, de modo tão inclemente e vigoroso, os remorsos que se extinguiam discretamente, sob as cinzas de uma longa vida de piedade toda feita do cumprimento de deveres sem importância, de minúsculos progressos sem significação real. Almas fracas, almas míopes, que não cumprem os pequenos deveres nem realizam os diminutos progressos como meio para chegar aos grandes, mas como uma evasão dissimulada, um álibi inútil, procurando enganar sua consciência e o próprio Deus. Certamente, pelo despeito causados por estas verdades aos que as rejeitam, explica-se em última análise o ódio militante que se ergue não raras vezes contra os Exercícios de Santo Inácio. Mas este ódio é o que (…) a Igreja sem cessar despertará entre os filhos da serpente, irredutivelmente adversários dos filhos da Virgem.

Cumpre estabelecer resoluções

Terminada a tarefa do exame de consciência, ainda há outra. É a formação das resoluções. Não basta que a vontade conceba propósitos genéricos e imprecisos, ou engendre apenas veleidades ineficazes. Santo Inácio quer propósitos firmes e fecundos, que recaem sobre objetos determinados e precisos, e, com esta salutar recomendação, mais uma vez tolhe ele os subterfúgios conscientes ou inconscientes dos retirantes pusilânimes. É preciso chegar até o fim, traduzir em atos as verdades tão corajosamente meditadas, as resoluções tão generosamente tomadas. Mas os atos só nascerão das resoluções firmes e precisas, nítidas e práticas, cujo cumprimento só se realiza com todas as previdências concretas e particularíssimas, que cada situação especial exigir.

Ordenar a sensibilidade para alcançar a perfeição

Mas… e a sensibilidade? Quantas vezes geme um pobre coração humano ao passar por esta via de angústia que conduz à santidade! Quanta renúncia dolorosa! Quanta ruptura trágica! Quanto heroísmo incrivelmente pesado é por vezes necessário para o prosseguimento nas vias luminosas, mas ásperas, da santificação! Santo Inácio não seria o grande Doutor da vida espiritual que foi, se não se preocupasse com a sensibilidade. Erram, e de modo frisante, os que supõem que a ascética inaciana implica na extinção da sensibilidade humana. Em quantos trechos de seus Exercícios, exige Santo Inácio de Loyola que se faça o que ele chama a “composição de lugar”? E o que é essa prática senão um meio de que ele se serve para impressionar a sensibilidade, facilitando-lhe assim a obediência ao império da razão e da vontade? Não recomenda Santo Inácio que meditemos apenas sobre as grandes verdades, mas recomponhamos os quadros das cenas; quer que vejamos, ouçamos, sintamos pela imaginação tudo quanto ele nos manda meditar. E, assim, tende ele a substituir na imaginação e na sensibilidade as impressões que arrastam para o pecado, por aquelas que levam ao Céu.

Se se pensa, pois, que a sensibilidade ocupa na ascética inaciana um lugar de ré condenada ao patíbulo, erra-se. Mas é certo — e nisto está uma das mais salientes características da espiritualidade de Santo Inácio — que, talvez melhor do que ninguém, ele põe claramente o homem diante do dever de reprimir sem piedade, de abater sem falsa misericórdia, de abafar sem vacilações nem recuos, os movimentos desordenados, os caprichos infundados, as petulâncias criminosas ou os sentimentalismos mórbidos que o pecado original deixou em nossa sensibilidade. Disse Nosso Senhor que o homem deve renunciar-se a si próprio para segui-Lo. Sem esta renúncia, não há santificação possível. E a escola que pretendesse articular uma escada que chegasse ao Céu sem essa renúncia teria, na realidade, aberto mais um abismo para atirar as almas ao inferno.

“Ponde Jesus no vosso caminho de espinhos”

Falei-vos, meus senhores, com aquela franqueza que caracteriza os próprios Exercícios Espirituais. Deverei dizer-vos que, assim procedendo, tive a antecipada certeza de que não obteria aplausos unânimes, nem simpatias gerais, senão deste nobre auditório, ao menos daqueles a quem chegar depois de impressa, esta singela palestra. Muitos são em nossa época os que se revoltam contra o dever, porque se insurgiram temerariamente contra toda a lei e todo o freio. Como agradar-lhes, fazendo a descrição de um método espiritual que é o mais eficaz para reintegrar o homem na prática dos mandamentos e no cumprimento dos deveres? Não menos numerosos são os amigos das meias verdades, das “verdades” adocicadas, simpáticas, polidas, incapazes de inquietar a quem quer que seja, e aptas a proporcionar a um auditório alguns minutos de delicado prazer intelectual. Suponho que não poucos defensores da verdade estremecem quando a vêem, inteiriça e sem véus, erguer-se aos olhos do mundo. Entretanto, não consistem em dissimulações ou recuos os métodos da Igreja. Quem segue a Jesus Cristo não deve temer as perseguições que vierem ao seu encalço. Almas retas, almas nobres, almas sedentas de verdade e de bem, é a vós que me dirijo. Vossa vida será, talvez, repleta de fardos e dores, e tereis possivelmente receio de acrescentar a tantos fardos mais um, a tantas dores mais uma.

Houve uma alma contemplativa, provada por mil sofrimentos, que se viu em sonhos percorrendo um caminho cheio de cardos, no qual seus pés se laceravam cruelmente. Apareceu, entretanto, o Salvador, e começou a seguir o mesmo trajeto. E por toda a parte onde seus divinos pés pousavam, ficava uma marca impressa no solo. A alma contemplativa fez sobre estas sacratíssimas pegadas seu caminho, e conseguiu andar com desenvoltura e sem dores, pela estrada onde há pouco conseguia apenas arrastar-se.

Ponde Jesus no vosso caminho de espinhos, segui suas pegadas e vereis como se mitigarão os sofrimentos que não conseguistes suportar, ou suportareis as dores que não for possível mitigar.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído dos Anais do IV Centenário da Companhia de Jesus, Ministério da Educação e Saúde, Serviço de Documentação, 1946, pp. 369-382.)

 

 

 

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