Santidade e personalidade – I

A Doutrina Católica visa que cada homem aprimore sua personalidade, caminhando rumo à santidade. Assim são criadas as condições para a constituição de uma civilização perfeita.

Todos ouviram falar vagamente, com certeza, do panteísmo, e da diferença entre este e o ateísmo. E depois, sobre a crença em Deus.

Noção de pessoa

De acordo com o ensinamento da Igreja infalível, existe um só Deus em três Pessoas realmente distintas. Mas esse Deus é pessoal. O que é uma pessoa? Chama-se “pessoa” um ser que pensa a respeito de si mesmo e forma, portanto, um circuito fechado. Um bicho, uma planta, uma pedra não são pessoas, e sim indivíduos. Por quê? Porque eles não pensam, não têm consciência de que existem, de um mundo interno e de um mundo externo. Nós, pelo contrário, temos essa consciência, e por causa disso somos pessoas.

Deus é Pessoa porque Ele tem consciência de Si próprio, daquilo que Ele criou. E de tal maneira é Pessoa que, na sua unidade — porque é um só Deus —, há três Pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O que constitui o mistério da Santíssima Trindade.

Tendo criado o universo, o qual, sendo necessariamente um reflexo d’Ele, Deus quereria refletir no universo o fato de que Ele é Pessoa. E, portanto, haveria de criar o universo constituído por pessoas; e por isso, criou os anjos e os homens, que são os elementos essenciais do universo. Os animais, as plantas e os minerais estão a serviço do homem, e são para o universo mais ou menos como a franja é para o tapete. Ninguém iria pôr em casa um tapete só feito de franja. Não seria tapete. Pelo contrário, há tapetes muito finos que não têm franja. A franja do tapete é uma coisa que faz parte dele, mas não é de nenhum modo a sua essência.

Assim também os animais, as plantas e os minerais são como as franjas do universo. Deus criou o universo para as pessoas, que são os anjos e os homens. E é em cada uma dessas pessoas que Deus encontra a sua imagem.

Com essa noção, compreende-se fazer parte da Doutrina Católica que cada pessoa se personifique cada vez mais. Quer dizer, Deus criou cada um de nós com determinadas características, as quais são agrupadas em torno daquilo que nós chamamos a “luz primordial”. Se a pessoa corresponde à graça, de fato se santifica, a sua personalidade toma um realce extraordinário, e tudo quanto ela tem de bom e característico fica ultra-característico. Tudo o que ela possui de mau é posto de lado.

Deus é eminentemente personificante

Em qualquer santo isso é ultra-característico. Todos são muito parecidos entre si, mas ao mesmo tempo enormemente diversos uns dos outros. O que São Paulo prefigurou de modo magnífico, dizendo: “Stella differt stella”(1).

Olhem para o céu onde há uma porção de estrelas. Uma criança diria que são iguais. Mas na realidade nestas miríades de estrelas não há nenhuma igual à outra. Assim são os homens.

Mais ainda, todos os homens que houve, há e haverá no plano de Deus formam uma coleção. E essa coleção deve de algum modo, no seu conjunto, espelhar o que o Criador é no seu conjunto. Quer dizer, assim como Deus é imenso, infinito, e tem todas as qualidades possíveis, isto se reproduz no conjunto dos homens. Cada um com sua tônica, tomando essas tônicas no conjunto se obtém uma espécie de mapa de Deus, de conjunto constituído por Deus. De maneira que nós não temos consciência, mas somos peças de uma coleção; peças super-individuais, peças pessoais de uma coleção, e cada um de nós, se corresponder à sua luz primordial, é de um jeito que faz parte da coleção de Deus. E para que esta tenha toda beleza, todo colorido, todo vigor, é necessário que cada uma dessas peças possua toda a sua personalidade. Deus é eminentemente personificante. Quer dizer, Ele dá à pessoa a sua personalidade. Por quê? Porque Ele é Pessoa.

Um extremo oposto disso é o panteísmo. O panteísmo sustenta que há um deus, mas esse deus não é pessoa, é um ente sem pensamento, sem conhecimento de si próprio; que vive, portanto, no eterno sono do bicho, da planta e da pedra. Quer dizer, não conhece nem entende nada, e que todos os seres que existem saíram desse deus, como moléculas saem de um determinado corpo.

A Doutrina Católica ensina o contrário: nós não saímos de Deus; fomos criados por Deus.

Mas, para o panteísmo, ser uma pessoa é uma desgraça; porque para ser uma pessoa é preciso sofrer, e sofrer é uma desgraça. Então, a finalidade da religião é que a pessoa vá se preparando para, morrendo, desaparecer, fundir-se de novo nesse ser sem raciocínio, sem consistência pessoal, que é deus.

Assim, dizem os panteístas, deus é a natureza. O que querem dizer com isto? Que deus é uma força a qual está presente em tudo, e que não tem consciência de si. Se quiserem, deus é a vida. A vida está nos presentes neste auditório, está em mim, nos bichos, nas plantas. A vida não tem consciência de si, nem é uma só vida. O panteísmo apresenta isso como um só fluido presente em todo mundo. Este fluido, esta vida, tem como objetivo despersonificar, liquidar as pessoas, para elas se prepararem a sumir quando elas morrerem. Desaparecerem dentro deste grande conjunto sem pensamento que é chamado “deus”.

Civilização cristã e cortesia

Daí decorre uma ideia da civilização católica, e outra ideia da civilização pagã, panteísta. Para a civilização católica trata-se de, nessa vida, a pessoa se personificar cada vez mais e depois adorar, no Céu, as três Pessoas da Santíssima Trindade. Para o panteísta trata-se de diluir a personalidade.

A civilização católica faz da vida, sobretudo, uma relação de pessoa para pessoa, e concebe a formação de maneira que cada pessoa é ela mesma e depois respeite a personalidade do outro, sinta as afinidades e as diferenças. Tenha cortesia.

O que é a cortesia? É a perfeita afinidade de pessoas distintas umas das outras. Há então um abismo que separa uma pessoa da outra. Eu sou eu, sou um circuito fechado em mim. Cada um dos que aqui se encontram é um circuito fechado em si. De outro lado, nós temos relações, porque somos todos homens.

A cortesia é a perfeita relação que passa por cima deste abismo existente de homem para homem. A força que liga este abismo chama-se amor fraterno católico. A cortesia é o laço cheio de respeito, de distinção, de afeto que prende as pessoas diferentes e as coloca numa relação, como notas de uma música. Dir-se-ia que as notas de uma música estão em estado de cortesia umas com as outras.

Imaginem uma pessoa irrefletida que, por exemplo, passa diante de um piano que está com a tampa aberta, escorrega e se apoia sobre o piano para não cair; sai um som horroroso parecido com uma descortesia. Por quê? É que não há harmonia.

A cortesia é a musicalidade das relações humanas. Mas nessa musicalidade cada homem constitui sua personalidade apoiado pelo outro, e todos crescem, todos brilham, cada um com a luz de sua personalidade própria.

Daí partem inúmeras consequências. Uma delas é que, na civilização medieval, a lei tomava em linha de conta direitos e deveres, o que a lei contemporânea não toma mais em consideração.

Por exemplo, o dever entre benfeitor e beneficiado é de gratidão. Na lei de hoje quase não há resquícios desse dever. Na lei da Idade Média o dever de gratidão era enorme. Daí nasceu o feudalismo, que é uma concatenação de gratidões. O rei dava terras a um suserano, que ficava vassalo do rei. O suserano concedia terras ao nobre menor, o qual se tornava vassalo desse suserano. Esse nobre menor dava terras a um plebeu, que ficava vassalo desse nobre menor. Cada um que deu ficava obrigado à proteção daquele que tinha recebido, para tudo. E cada um que recebeu ficava obrigado a obedecer e a apoiar aquele que tinha sido seu benfeitor. E esta era a concatenação das relações pessoais.

O nobre e o burguês, na Idade Média e no “Ancien Régime”

Na Idade Média, os direitos eram mais sobre as pessoas do que sobre as coisas. Havia direito sobre as coisas também, mas o direito sobre as pessoas se considerava muito mais do que o direito sobre as coisas.

Querem ver um exemplo curioso disso? Na Idade Média o que era mais: um riquíssimo burguês, ou um nobre, senhor de um castelinho com uma aldeia? Era o nobre. Mas o burguês não era muito mais rico, mais poderoso? A resposta que um medieval daria era é a seguinte: “Não vem ao caso. O nobre governa pessoas; o burguês governa matéria, governa ouro. É muito mais governar homens do que ouro. De maneira que é uma riqueza metafísica maior ser senhor de uma pequena aldeia do que dono de uma grande fortuna”.

Não sei se percebem o respeito ao homem que entra dentro disso. E por essa razão se, por exemplo, entrasse numa cidade um senhor feudal num cavalinho rapado, vestido ele mesmo meio apertadamente, porque suas terras produziam pouco, com um escudeiro que ia a pé, porque não tinha cavalo; o senhor portando uma espada com o forro meio gasto, e um chapéu com uma pluma que já tomou muita chuva…

Passando ele diante de um burguês, médio, vestido de veludo, usando um chapéu magnífico com pedras preciosas, e não uma pluma, mas uma cauda de pássaro no chapéu, o burguês se descobria, dando um passo à frente, e o nobre correspondia amavelmente, mas de cima.

Alguém diria: “Incompreensível, orgulho”. Não. É o contrário. O nobre afirmava aí o maior valor dos seus vassalos, porque eram homens, sobre o ouro do burguês. Isto não se encontra em nenhum manual de História, mas é o modo do medieval conceber as relações.

Terminada a Idade Média, o feudalismo foi acabando, mas muitos restos dele ficaram na sociedade do “Ancien Régime”(2). A sociedade se transformou, mas isso ainda existia.

Considerem, por exemplo, um nobre do “Ancien Régime” e um burguês riquíssimo. Por que aquele era nobre? Porque ele era de uma classe social que tinha obrigação de ir à guerra e derramar o sangue pelo rei. Enquanto o burguês não podia ser convocado para o serviço militar; fazia serviço militar se quisesse.

O nobre tinha essa excelência de alma de aceitar ser da classe que é obrigada a ir morrer pela pátria, ainda que não quisesse — quer dizer, era crime não ir. Como a dedicação vale mais do que o ouro, porque a dedicação é uma qualidade do homem, e o homem vale mais do que o metal, por causa disso o nobre valia mais do que o plebeu. Não sei se estão percebendo a ação contínua da pessoa humana.

“E se um plebeu ou um burguês quisesse ir para a guerra?” Ah! Se fosse para a guerra e se tornasse um herói era frequentemente elevado ao cargo, à condição de nobre. Mas aí ele se engajava num outro circuito. Acabou a vida cômoda, terminaram os verões despreocupados e com passeio, acabou a agradável contagem do dinheiro por detrás dos guichês da loja. Porque, habitualmente, chegando a primavera e o verão, começava a guerra e os nobres todos tinham que partir. Se o plebeu ficasse nobre, ele tinha que ir para a guerra também.

Compreende-se que o número de candidatos para nobre era bem menor, do que se podia imaginar à primeira vista.

Como se explica isto? É a prevalência do homem sobre a matéria, das qualidades humanas sobre as qualidades materiais.

O burguês tinha uma vida muito mais confortável do que o nobre. Tomem gravuras daquele tempo, representando o interior das casas burguesas: são residências agradáveis, aconchegadas, confortáveis, com tudo abundante, etc., feitas para as pessoas se regalarem.

Observem as gravuras representando os palácios: são lindos, de alto luxo, não são cômodos. Basta ver os móveis que restaram. Se um indivíduo sentar-se irrefletidamente numa daquelas cadeiras, ele cai com a cadeira. Aqueles móveis exigem que a pessoa esteja continuamente numa atitude de grande dignidade, de grande distinção. Aquele modo de falar todo trabalhado exige uma atenção contínua na língua que se usa, nas fórmulas de cortesia, nas etiquetas, para estar à altura da situação. Que cultura era preciso ter para sustentar aquelas grandes conversas…

Para considerar simplesmente isto: como entrava uma jovem nobre em sociedade?

(Continua no próximo número)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/6/1974)

Revista Dr Plinio 217 (Abril de 2016)

 

1) Do latim: Há diferença de estrela para estrela (1Cor 15,41).

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

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