Considerações sobre o Brasil Império – II

Durante o extenso reinado de Dom Pedro II, o Brasil teve muitas décadas de paz e prosperou colossalmente. Governando a nação como um pai, o Imperador viajou pelo País inteiro, tornando-se íntimo de todos. Visitou a cidade de Pirassununga, onde os avós maternos de Dr. Plinio o receberam em casa. Vendo a menina Lucilia, o monarca afagou-a e chamou-a de “minha filha”.

 

O governo de Dom Pedro II foi um longo reinado patriarcal. Tanto mais patriarcal quanto mais as suas longas barbas iam ficando brancas. Aquela barba concorria bem para a popularidade dele. Por certo, nenhum publicitário lhe recomendaria raspá-la ou reduzi-la a um bigode faceiro. A ideia até desagrada. Aquela grande barba patriarcal tinha um sentido muito afim com o modo pelo qual os brasileiros gostam de ser governados.

Um dos monarcas mais cultos de seu tempo

Dom Pedro II tornou-se Imperador em 1830 e foi deposto em 1889. Portanto, foram quase sessenta anos de reinado. Foi de longe o homem que mais longamente governou o Brasil. Creio, aliás, que a essa sobrevivência da monarquia – um pouco como Moisés vogando num bercinho no Nilo, assim Dom Pedro II nas suas almofadas nos braços incertos de José Bonifácio – deveu-se não só a unidade do Brasil, mas o fato deste País não ter caído no regime dos “pronunciamentos” das repúblicas espanholas da América do Sul, nas quais, “por dá cá aquela palha”, eclodiam brigas – um tanto herdadas do temperamento “caliente” da madre pátria – logo puxadas a tiros. Depõem um presidente, colocam outro… lá vai aquela coisa.

Dado nosso feitio, nós, brasileiros, custamos a entrar na briga, mas para sair depois também não é fácil. Apaixonamo-nos pelas brigas e aquilo vai até onde for…

O Brasil teve praticamente – exagerando um pouco – cinquenta anos de paz. Houve alguns golpes de Estado e outros episódios análogos, mas que não tocaram na pessoa do monarca nem no poder central. Foram pequenos golpes regionais, coisas desse gênero. Dom Pedro II foi um símbolo de união e de paz no Brasil.

Ele parece ter compreendido isso perfeitamente, e desde o começo colocou-se numa posição assim. José Bonifácio despertou nele um ardente desejo de desenvolver-se intelectualmente. Para mim, não há dúvida de que ele foi um dos monarcas mais cultos de seu tempo. Não sei se ele era tão inteligente, pois não conheço um lance de grande inteligência dele. Mas era um homem que lia muitíssimo e tinha a ambição de ser conhecido no mundo inteiro como um grande intelectual. E foi. Se buscarmos na enciclopédia Larousse os “Pedros” do Brasil, encontraremos referências a Pedro II como sendo um sábio que se distinguiu entre os sábios. Correspondia-se com Victor Hugo e com outros grandes intelectuais daquele tempo. Quando ele ia à Europa, recebia visitas dessa gente e assim teve para si uma espécie de carreira intelectual ao lado da política. Essa carreira intelectual dava-lhe prestígio no Brasil, porque ter um imperador considerado sábio no mundo inteiro dava cotação, e a sua projeção internacional neste sentido era maior do que a de qualquer brasileiro. Ele pairava nas nuvens…

Patriarca da grande família chamada Brasil

De outro lado, pela Constituição brasileira, o seu papel era de não entrar em partido político e não tomar a defesa de nenhum, mantendo uma espécie de equilíbrio entre os partidos. E ele se atinha estritamente à Constituição. Enquanto seu pai era despótico e cheio de venetas, ele, de um temperamento bom, pachorrento, amável, muito cordial, cumpria a Constituição à risca.

Entretanto, Dom Pedro II encontrou uma saída para dominar a política: seu prestígio pessoal sobre os políticos era tão grande que, embora tenha exercido com sobriedade as atribuições de Imperador, as de conselheiro extraoficial dos políticos exerceu-as largamente. Inclusive, faziam-lhe a acusação de que mandava mais no Brasil por seu prestígio pessoal do que como monarca. Queriam ver nisso uma inversão da Constituição, mas ficava-lhe fácil argumentar: “Não. Qual foi o artigo que eu violei? Aconselhar-se comigo numa ação privada? Eles podem se aconselhar com quem quer que seja, só não podem aconselhar-se com o Imperador?”

Imaginem homens, vindos de qualquer ponto do Brasil, que vão exercer suas funções governamentais no Rio de Janeiro e encontram um monarca que está governando há cinquenta anos… Com uma memória prodigiosa, conhece tudo como se deu, como foi, como não foi, e sabe aconselhar para além de suas atribuições. De maneira que ele ajuda os ministros a acertarem. Não pediriam conselhos a esse homem?

Ademais, com o jeitão dele – de bom pai de família, papai de todos os ministros mais novos que chegavam, conselheiro de todo o mundo que queria dele um bom aviso, uma boa ponderação, uma boa sugestão, acima de todos os outros como imperador, como sábio, como homem que tinha no Brasil uma bela fortuna – ele estava quase invulnerável, por cima das nuvens e numa posição meio de patriarca desta grande família chamada Brasil, e meio de chefe de Estado. Um rei que governa como pai dá licenças e conselhos a todo o mundo.

Isso proporcionava uma grande concórdia nacional dentro das paixões regionais que havia: contendas entre partidos, saía porrete, falsificação de eleições…  Contudo nunca eram brigas profundas, mas superficiais. No fundo, reinava uma grande tranquilidade, perturbada apenas pela Guerra do Paraguai.

Nessa guerra, Dom Pedro II se empenhou de tal maneira que quando ela se iniciou, ele era ainda mocetão; quando acabou, as barbas dele tinham ficado brancas. Provavelmente, ele compreendia que se perdesse a guerra perdia o trono. Então, agarrou-se à vitória do Brasil com toda a força, foi lá, lutou, entrou na história, mandou o Conde d’Eu, genro dele, batalhar também, deu todo o apoio a Caxias. Participou intensamente da guerra até Solano Lopes ser derrubado. Um ano depois de ter vencido a guerra, mais ou menos, mandou um oficio ao parlamento pedindo, nos termos da Constituição, licença para se afastar do Brasil para descansar por causa da guerra.

O Brasil teve a segunda esquadra mercante do mundo

A viagem de um monarca naquele tempo, de navio, era lenta, levava mais ou menos um ano. Acrescentando que, com as economias que tinha feito, ele estava em condições de pagar todo o gasto da viagem e não precisava o Tesouro brasileiro entrar com um tostão.

Nesse período, o Brasil próspero e tranquilo estendeu muito suas fronteiras interiores, quer dizer, a parte do solo brasileiro cultivada cresceu muito. Não foi preciso fazer reforma agrária. Tirava do Estado, é claro. Ali não tem dono, os fazendeiros entravam, abriam fazenda, aquilo passava a pertencer a eles e estava acabado!

Assim, o Brasil passou a produzir grande quantidade de víveres, dos quais os principais eram o café e o fumo. Aliás, no brasão de armas do Brasil daquele tempo notam-se ramos de café e de fumo.

O Brasil precisou e teve ele próprio a sua esquadra mercante. Constituída de navios construídos com madeira das florestas brasileiras, chegou a ser a segunda do mundo. Explica-se: os mercados consumidores – os Estados Unidos, um pouco o Canadá e as várias nações da Europa – eram muito distantes. O Brasil com o litoral enorme precisava fazer navegação de cabotagem, porque as estradas internas eram muito raras; então ficava mais fácil realizar a comunicação por meio do mar. Sem muitos navios não era possível conseguir isso. O Brasil ficou com uma esquadra mercante colossal.

As finanças estavam prósperas

Qual era o estado das finanças? Nas notas do tempo do Império estava escrito o seguinte: “Mediante a apresentação desta cédula, encontrará Vossa Senhoria no Tesouro Nacional equivalente quantidade em ouro”. E era verdade. Bastava a pessoa chegar no Tesouro e dizer “Eu quero isto em ouro”, que eles davam.

Mas, como é muito mais fácil transportar papel do que ouro, acontecia que os comerciantes pagavam um tanto para receber em papel e não em ouro. É claro, porque como valia exatamente o mesmo tanto uma coisa quanto outra, para quem precisa ir, por exemplo, de São Paulo ao Rio de Janeiro carregando cem mil réis em ouro, tinha de levar um saco; enquanto que a mesma quantia em papel cabia numa bolsa. Resultado, pagava-se um acréscimo para receber o papel moeda que, por isso, valia ligeiramente mais do que o ouro, de tal maneira as finanças estavam prósperas. Era o ouro extraído das próprias minas do Brasil.

Havia inflação? Não propriamente. Tirava-se do chão o ouro e a prata, cunhava-se e distribuía-se. Hoje, aperta-se um botão, a máquina gira e saem as notas. Naquele tempo não era assim. As notas valiam, de fato, o correspondente em ouro e prata, e isso em qualquer mercado do mundo.

Com isso o Brasil prosperou colossalmente. Principalmente duas cidades, São Paulo e Rio de Janeiro, se tornaram centros animados de contato com o exterior.

Houve apenas uma zona do Brasil que decaiu: o Nordeste. Por que decaiu? Toda a sua economia girava em torno do plantio de cana-de-açúcar. Ora, os alemães inventaram um modo de fabricar açúcar com beterraba. Era um direito deles… Resultado: caiu vertiginosamente o preço do açúcar. E as famílias de plantadores de cana empobreceram muito. Eis a causa remota, e não única, de um certo atraso do Nordeste. É que a fonte de sua riqueza naquele tempo caiu de repente.

Fatores que corroíam o trono de Dom Pedro II

Durante esse tempo, Dom Pedro II viajou prodigiosamente pelo Brasil. Era um homem forte, muito robusto e fazia longas viagens pelo interior, às vezes no lombo de burro e de cavalo. Visitou o País inteiro e tomava notas. Ele tinha um famoso caderno preto, onde registrava todos os abusos que notava. Chegando ao Rio de Janeiro, ele mandava chamar os ministros e pedia interferência contra tal juiz que era ladrão, tal outro não sei o quê…  Esse caderno era misterioso, ninguém lia, só ele.

Nesse regime, esse homem conhecedor e conhecido do Brasil inteiro, palmo a palmo, tornou-se íntimo de todo o mundo. Isso ainda firmou mais a influência dele.

Contudo, alguns fatores corroíam seu trono. Quais eram esses fatores? Primeiro, o fato de que ele era o único monarca do continente americano. A monarquia parecia uma forma de governo velha, que não pegava em terras novas. A tentativa de instaurar uma monarquia no México, com o Imperador Maximiliano, deu numa tragédia em Querétaro. Foi uma coisa efêmera, não pegou, e constituiu para os olhos do espírito liberal daquele tempo mais uma prova da incapacidade de a monarquia germinar na América. Havia, pois, uma certa vergonha do Brasil estar fora de moda, sendo monarquia, porque a república era a forma de governo elegante do tempo. A França e a América do Norte eram repúblicas. A Inglaterra, apesar de não ser republicana, era a mais liberal das monarquias da Europa. De maneira que tudo isso fazia com que o Imperador parecesse uma excrescência que o curso dos tempos teria que eliminar.

Por outro lado, também concorreu muito para a queda da monarquia a atitude de Dom Pedro II na questão religiosa com Dom Vital, que não é o momento de tratar.

Outra circunstância foi a seguinte: o Imperador, ele próprio, extremamente liberal, proporcionou todas as facilidades possíveis para a república entrar. O Partido Republicano gozava de toda a liberdade.

Um caso ocorrido na minha família mostra bem isso. Minha avó tinha um irmão que fez concurso para a Faculdade de Direito e passou. Ele devia ser nomeado pelo Imperador a quem escreveu uma carta, dizendo: “Eu previno Vossa Majestade que sou republicano e que, como professor da Faculdade de Direito de São Paulo, trabalharei pela proclamação da república. Portanto, se disserem que eu, tendo sido nomeado por Vossa Majestade, fiz propaganda republicana, não julgueis que sou um traidor e que vos devo uma cátedra a qual conquistei pelo meu talento. Agora, decidi como quiserdes.”

Depois de alguns dias saía o decreto do Imperador nomeando o republicano como catedrático da Faculdade de Direto. Fatos como este há em quantidade no reinado dele. Ele corroía assim o seu próprio trono.

Visita a Pirassununga

A visita de Dom Pedro II a uma cidade do interior de São Paulo, Pirassununga, onde moravam Dona Lucilia e meus avós maternos, retrata bem o aspecto familiar do relacionamento do Imperador com o povo brasileiro.

Naturalmente, toda a cidadezinha estava avisada com muita antecedência da chegada do monarca. Então prepararam grandes festas e foram recebê-lo na estação de trem.

Havia em Pirassununga fazendas com pomares fertilíssimos, os quais produziam frutas em tal quantidade que estas caíam pelo chão e qualquer pessoa podia pegar, sem pedir licença; aquilo era aberto, porque dava para quem quisesse e sobrava toda espécie de frutas.

Ora, Dom Pedro II era louco por jabuticabas e existia ali uma fazenda cujo proprietário plantara um pomar só de jabuticabas. Então, para alegrar um pouco a visita, ao invés da eterna festa de escolinha, com meninas recitando discursinhos compostos pelo professor, resolveram que era mais interessante oferecer ao Imperador e à Imperatriz um lanche em casa de meu avô, seguido de uma visita a essa fazenda para ele chupar jabuticabas à vontade.

Durante todo esse tempo, o trem imperial ficava parado na estação de Pirassununga. Evidentemente, ninguém o movia nem tinha horário; quando o Imperador acabasse de comer jabuticabas, ele embarcava.

Chegando à cidadezinha, o monarca desembarcou ao som da banda de música municipal e foi levado para a casa de meu avô. Minha mãe me dizia que ela ainda se lembrava de minha avó ter ficado no vagão com a Imperatriz porque, sendo manca, andava com dificuldade e não ia descer. Ademais, parece que não se interessava tanto assim por jabuticabas…

O Imperador, afagando a menina Lucilia, chama-a de “minha filha”

Assim, Dona Teresa Cristina permaneceu no vagão conversando com as senhoras de Pirassununga, enquanto Dom Pedro II descia até a casa de meu avô e ali tomava contato com os principais políticos da cidade. Deu-se, então, uma cena tipicamente brasileira.

Enquanto eram servidos os alimentos, o monarca pegou minha mãe, que era uma menina de quatro ou cinco anos, a pôs em pé entre os joelhos dele, e durante a conversa ele brincava com ela chamando-a de “minha filha”. Para agradá-la, distraído e meio maquinalmente, passava a mão sobre os cabelos dela. Tudo isso correspondia a essa familiaridade das coisas brasileiras, por onde Dom Pedro II era o vovô do Brasil.

Mamãe contava que seus cabelos tinham sido bem arranjados por minha avó, que os deixara ultracacheados e ornados com uma fita a qual a pequena Lucilia achava linda. Ela viu o Imperador derrubar todo o belo “edifício” e ficava com uma vontade enorme de pedir-lhe para não fazer aquilo, pois estava estragando o penteado dela.

Mas, coisas do instinto de menina, ela olhava para o pai a fim de ver se podia fazer isso, e o pai, naturalmente, percebia qual era a reação da filha. E, enquanto falava com o Imperador, ele sorria e com o olhar como que dizendo: “Não se atreva! Porque é a mão imperial, e onde ela pousa não se corrige nada. Depois que ele for embora, arranje sua fita e seus cachos”. Não foi dito, mas o olhar exprimia isto.

Falava o tupi na perfeição

Creio ter sido nessa mesma ocasião, não tenho certeza, que se deu outro fato o qual mostra bem a familiaridade das visitas do Imperador. Neste caso, a meu ver, familiaridade até meio excessiva…

Dom Pedro II sabia falar um dos idiomas indígenas na perfeição, como quem fala um idioma contemporâneo. Um político do lugar, querendo colocar em má situação o chefe da oposição, adversário político, quando ia da estação para a casa, disse ao Imperador:

— Vossa Majestade sabe quem aqui está em condições de falar tupi com Vossa Majestade? É o Doutor Fulano. Ele fala tupi na perfeição. Dirija-se a ele nesse idioma, pois vai ficar muito contente.

Tendo-lhe sido apresentado o Doutor Fulano, Dom Pedro II começou a falar com ele em tupi. O homem não entendeu… Podia passar pela cabeça dele tudo no mundo, exceto que o Imperador lhe dirigisse a palavra em tupi.

Por fim, acabou dizendo:

— Eu não entendo o que Vossa Majestade está dizendo.

Então o monarca caiu em si, compreendeu que tinham feito uma jogada política para desprestigiar o homem e disse amavelmente:

— Ah! Tinham me dito que o senhor falava tupi, por isso lhe dirigi a palavra nesta língua…

E mudou de assunto, não revelou quem lhe dissera isso e a coisa passou.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/11/1985)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

 

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