OBRA-PRIMA DA PIEDADE CATÓLICA

No vasto e rico universo da arte católica, dois modos existem de representar a boa pintura religiosa, aquela em que os mestres dos pincéis se superam ao imprimir nas telas as luzes e as cores de seu talento. Uns procuram representar seus temas o mais possível de acordo com os aspectos comuns da vida, abstraindo daquilo que se nota muitas vezes no cotidiano católico, que é a transparência da graça nas pessoas ou nos ambientes.

Cumpre dizer: tais pintores são primorosos no retratar o que é comum. Outros, porém, procuram envolver suas pinturas com essa espécie de imponderável místico que permite perceber na cena a presença da graça. Exemplo paradigmático dessa categoria de artistas foi o Beato Angélico, o “magnata” da pintura da graça, cujos belíssimos afrescos constituem um dos maiores tesouros da iconografia da Santa Igreja.

Não menos admirável, porém, é o talento de outro pintor italiano, que viveu entre o fim da Idade Média e o início da Renascença, o célebre Giotto. Como o extraordinário frade-artista de Florença, também ele deixou-nos quadros e afrescos impregnados — a meu ver, intensamente impregnados — de sobrenatural. Fra Angélico escolheu como “telas” as paredes do Convento de São Marcos, na urbe florentina; Giotto, as da chamada Capella degli Scrovegni, em Pádua.

Trata-se de uma famosa capela, edificada anexa ao palácio da influente família dos Scrovegni, hoje completa ofícios, reservadas numa espécie de gradim de mármore também muito bonito e bem trabalhado. Ao fundo, o pequeno altar de linhas singelas, sob uma abóbada de arcarias ogivais, emoldurado por estalas de madeira envelhecida, gasta, e por colunas ricas em lavores e coloridos do mesmo tipo de pedra que adorna toda a capela.

Nas paredes, harmônicas com o teto abaulado, vê-se a maior beleza, a principal atração desse exíguo e inestimável recinto católico: as cenas da vida de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, pintadas por Giotto. Caracterizadas, de um lado, por uma inocência ainda toda medieval; e, de outro, pela transparência daquela atmosfera sobrenatural magnífica.

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Sou particularmente sensível à harmonia das cores. Em vista da predominância dos recursos cromáticos utilizados por Giotto, sinto especial agrado por alguns desses afrescos. Por exemplo, a cena do Casamento de Nossa Senhora com São José, em que aparece uma espécie de radicalidade nos tons claros e a mesma radicalidade nos tons carregados, resultando num contraste muito interessante. Há matizes de verde, azul e lilás delicados, postos em realce pela combinação de vermelhos, “carminse” laranjas bem profundos. A força destes tons escuros confere uma nota de seriedade ao claro, e constrói um equilíbrio de cores superiormente belo.

O quadro tem como fundo um pequeno edifício que, segundo a imaginação de Giotto, seria uma parte do Templo de Jerusalém. O sacerdote está revestido de uma capa vermelha, e de uma túnica que vai até o chão. É um velho de cabelos já brancos, abundantemente barbado, numa atitude digna, cheio de piedade e de recolhimento. São José traz na mão esquerda o bastão florido, que indicava ser ele o esposo escolhido pela Providência para se casar com Maria Santíssima. Na mão direita, segura a aliança que simboliza essa maravilhosa união. De acordo com uma velha tradição, Giotto representa São José muito mais velho que Nossa Senhora. Ela, ainda mocinha, tem o recato e a compostura de uma pessoa toda virginal. Como traje, leva uma túnica de cor muito clara, que fala de pureza, de delicadeza de sentimentos levada ao mais alto grau. O seu porte é ereto, imaculado.

Outro afresco muito bonito é o que retrata a Apresentação do Menino Jesus no Templo. De um lado, Nossa Senhora e São José; de outro, o Profeta Simeão e a Profetisa Ana. Embora a parte central seja concebida em termos medievais, a ideia é mais uma vez a de que a cena se passa numa dependência do Templo de Jerusalém. Nessa pintura, o fato de maior interesse é a atitude dos santos esposos. Nossa Senhora apresentou o Menino ao Profeta, e aparece com as mãos no gesto de quem acabou de O entregar, ou de quem O receberá de volta. São José, modestamente recolhido a segundo plano, acompanha a cena. É notável a atmosfera de santidade e de pureza que domina o quadro inteiro, de maneira que o próprio templozinho possui algo de esguio e de virginal. Tudo é posto por Giotto sobre um fundo meio azulado, com folhagens e vegetações hoje apagadas, confundindo-se com um céu também de azul profundo. O colorido mais escuro confere particular relevo à parte central do tema: o Divino Infante — sob uma espécie de foco de luz —, o Profeta Simeão e Nossa Senhora (sob luminosidade menor), São José e a Profetisa Ana.

Na Fuga para o Egito, Nossa Senhora vai montada num simples burrico, e toda a Sagrada Família denota os sinais exteriores da pobreza. Mas a dignidade d’Ela é de uma princesa! Um porte retilíneo, as costas sem arcadura nem inflexão, a fronte alta, e a resolução com que enfrenta a viagem, os riscos, denotam a majestade da Mãe do Rei do Universo. São José caminha na frente, atentíssimo para o que possa acontecer com a Mãe e o Menino.

Ela confia em Deus e no esposo. Portanto, vai recolhida em oração, abraçando o Filho em seu colo. Giotto exprime de modo extraordinário a celestial intimidade dos dois. Certamente Ela reza a Jesus, pedindo por aqueles que estão contemplando o quadro…

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Noutro ciclo de afrescos surge o Domingo de Ramos, em cuja composição muito transparece aquela inocência de que atrás falamos. Nosso Senhor entra montado num burrinho, e abençoa o povo à sua frente.

Mas sua fisionomia é de tristeza, o rosto varonil, uma abundância extraordinária de barba, e uma atitude de Prelado de altíssimo poder, ou de Chefe da religião verdadeira. Muito mais do que isso, de Messias. No meio da multidão que o acompanhava, percebe-se uma ou outra pessoa com a auréola da santidade. O próprio Jesus está coroado por um aro muito definido. É, em grau infinito, o primeiro e o maior de todos os Santos, fonte e causa de todas as santificações.

Mais adiante, depois de lindíssimas pinturas como a Ressurreição de Lázaro, vem a Crucifixão e Morte de Nosso Senhor, o quinto mistério doloroso do Rosário. Jesus, pregado ao madeiro, está lívido, tendo exalado seu último suspiro. Santa Maria Madalena, identificada pelos longos cabelos soltos, oscula-Lhe os pés. A um canto vê-se Nossa Senhora, amparada por São João Evangelista e por uma das santas mulheres. No lado oposto aparece uma parte da multidão que deseja assistir ao acontecimento. O céu está povoado de Anjos cantando a glória do Divino Redentor. E enquanto os outros presentes sentem apenas dor e vergonha, Maria Santíssima, embora abalada, permanece de pé, com força e determinação. Imaculada, cheia de graça e de amor a Deus, era capaz de refrear em alguma medida sua própria dor, de maneira a servir de consolo e sustentação para os que, neste momento sumamente trágico, claudicassem na fé e na certeza da Ressurreição.

São alguns episódios da Paixão segundo Giotto, uma das obras-primas da piedade católica.

Para mim, esse face-a-face entre Nosso Senhor e Judas é das coisas mais espantosas que um pincel humano tenha pintado. Nosso Senhor está sério e olhando Judas até o fundo da alma. E este procura mentir. É a verdade eterna e subsistente, encarnada, que olha para um homem falso. E Judas, que procura tornar a mentira dele aceitável, abraça Nosso Senhor e O olha com ares de quem pretende ser um grande amigo. Nosso Senhor o fita e lhe diz: “Judas, é com um ósculo que trais o Filho do Homem?” Nosso Senhor recebe com paciência esse beijo imundo, acompanhado provavelmente de um mau odor asqueroso, cheiro do inferno. Judas nada responde à pungente pergunta do Mestre. Ele trai o Filho de Deus. Depois disso, se porá a delirar e a correr de um lado para outro, até cometer o suicídio.

Nesta cena, Giotto quis representar em Nosso Senhor Jesus Cristo o sumo de todos os predicados intelectuais e morais. E em Judas, o sumo de todas as abjeções. Daí os recursos de que ele se serviu. Primeiro, a diferença entre as duas cabeças. A de Nosso Senhor é provida com certa largueza de cabelo, digna, composta, sem espalhafato. A de Judas, pelo contrário, está coberta com uma grenha suja, abundante, que ele procurou pentear bem antes de cometer seu crime infame, a fim de que nada atrapalhasse o “bom negócio” que ia fazer. Era preciso que tudo se passasse com ares de cordialidade.

Então, ele se enfeitou. Mas é patente a desordem capilar dele em contraste com a proporção e a ordenação adequada dos cabelos de Nosso Senhor. A barba do Divino Mestre é de boas dimensões, dispondo-se belamente em cima da pele, com muita mesura e harmonia. O mesmo deve-se dizer do bigode. Já a barba de Judas é feita de uns fios raros, formando arquipélagos peludos em certos lugares do rosto, confundindo-se com a própria carnatura, e mais nada. Além disso, a parte que vai do alto da maçã do rosto até o queixo é enormemente desenvolvida em comparação com a de Nosso Senhor, em quem tudo é proporcionado.

Judas dá a impressão de uma gulodice sórdida e horrorosa. Nosso Senhor, a de uma austeridade delicada e verdadeiramente divina.

 

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